JORGE RODRIGUES SIMAO

ADVOCACI NASCUNT, UR JUDICES SIUNT

Reflexão sobre a depressão - Silêncios que Não Choram

A depressão sempre se manifesta como tristeza?

A depressão não se resume ao pranto. É um território mais vasto, mais difuso e mais subtil. Uma sombra que se estende sobre os dias sem pedir licença ao coração. Muitos acreditam que se mede pelo rosto molhado ou pelo gesto curvado. Mas há dores que não se ajoelham. Há tristezas que não choram. Há silêncios que gritam com os olhos abertos. A tristeza é apenas uma das roupas possíveis. Há quem vista outras como indiferença, cansaço e riso forçado. Ela sorria nos jantares, sabia escolher o vinho, elogiar o prato, contar histórias. Mas dentro dela, o chão desaparecia. O sorriso pode ser muralha, máscara e defesa. Quem ri alto, quem anima os outros, pode estar a esconder o vazio. O riso dela era uma fortaleza. Quem o ouvia pensava mas “que mulher forte”. Mas por dentro, o eco batia em paredes nuas.

O corpo guarda segredos. Fadiga inexplicável, esquecimento constante e atrasos repetidos. Não é preguiça e não é desleixo. É o corpo a traduzir uma alma cansada. Ele aprende a camuflar-se, como animal ferido que não quer ser caçado. Torna-se cúmplice da dor, sem que o mundo perceba. Imagina-se a mente como uma casa. Alguns quartos estão iluminados, outros trancados. A depressão é o quarto onde a luz não entra. Não há lágrimas nesse espaço, apenas poeira acumulada sobre móveis que ninguém visita. Há uma divisão que não se abre há meses. Não por medo, mas por cansaço. É lá que mora o nome que não se diz. A rotina pode ser fuga. Reuniões, compromissos e tarefas sem fim. Não é produtividade, é sobrevivência. Ela corria de encontro em encontro como quem foge de si. O silêncio era ameaça. O descanso, inimigo. A rotina torna-se muralha contra o vazio mas também prisão.

O vazio tem gramática própria. Conjuga-se no pretérito do desejo e no futuro da desistência. As palavras tornam-se curtas como “não sei”, “tanto faz”, “deixa estar”. O silêncio é também linguagem. Quem sabe escutar percebe o peso do que não se diz. A ansiedade e a depressão são irmãs. Uma acelera, a outra paralisa. A ansiedade empurra, a depressão puxa. E no meio, estou eu corda esticada entre dois extremos. A ansiedade é o fogo que arde sem se ver. A depressão, a cinza que cobre o chão.

A sociedade não reconhece a depressão sem tristeza. Se não choras, não estás triste. Se não estás triste, não estás doente. Se não estás doente, então és ingrato. Assim se julga, assim se silencia. O olhar que não vê é também violência. A invisibilidade da dor é a sua maior prisão. Não me perguntes se estou triste. Pergunta-me se ainda sonho. Se ainda sinto o sabor da manhã. Se ainda quero ficar. A cura começa na escuta não daquilo que se diz, mas daquilo que se cala. A escuta é o primeiro gesto de amor, e talvez o único capaz de abrir a porta do quarto escuro.

A depressão é uma paisagem interior que não se deixa cartografar. Muitos acreditam que é apenas um rio de lágrimas. Mas é também deserto, nevoeiro e ausência. Há quem viva sem chorar, sem se curvar e sem se mostrar vulnerável e ainda assim carregue um peso que não se mede em lágrimas. Pode manifestar-se em gestos subtis como o olhar perdido, o corpo que se arrasta e a mente que esquece o essencial. O mundo vê distracção, preguiça, desleixo. Mas por trás desses sinais há uma alma exausta. O corpo torna-se cúmplice da dor, aprende a esconder e a disfarçar.

A mente é uma casa com divisões. Algumas iluminadas, outras trancadas. A depressão é o quarto onde o ar se torna pesado e onde o tempo não passa. Quem vive ali sabe que não é medo que impede a porta de abrir; é cansaço. É lá que mora o nome que não se partilha. A depressão é também uma forma de silêncio. Não o silêncio das manhãs nem o dos amantes, mas um silêncio denso, que se instala nos ossos e nas paredes da alma. Um silêncio que transforma o tempo em matéria pesada, que torna cada gesto uma travessia. Pode ser invisível, discreta e quase imperceptível. Mas está lá como sombra que acompanha e como nevoeiro que cobre o horizonte. Às vezes é indiferença. Às vezes é cansaço. Às vezes é apenas o vazio.

O vazio não é ausência de tudo, mas ausência de sentido. É olhar para o dia e não encontrar motivo. É levantar-se e sentir que o corpo pesa mais do que deveria. É caminhar pelas ruas sem reconhecer beleza nas árvores, nos rostos e nos gestos. O corpo arrasta-se, esquece e atrasa-se. Não encontra energia, não responde ao desejo e não acompanha a vontade. Torna-se cúmplice da dor. Quem olha de fora vê preguiça. Mas por trás há uma alma cansada.

A depressão é invisibilidade íntima. É sentir-se ausente da própria vida. O mundo continua a girar, as conversas acontecem e os compromissos sucedem-se mas nós estamos desligados, como espectadores de uma peça que não nos pertence. Essa distância é subtil. Quem olha vê alguém funcional, que sorri e que responde. Mas por dentro há um vazio que cresce. Cada gesto é feito em piloto automático, sem alma, sem desejo e sem ligação. A depressão pode ser isso; não tristeza, mas desligamento. E há o peso. O peso que não se vê, mas que se sente em cada músculo, em cada passo e em cada respiração. O corpo torna-se pesado, como se carregasse uma pedra invisível. Não é dor física e não é doença visível; é fadiga que não se explica.

O mundo exige leveza, alegria, entusiasmo, presença. Quem não corresponde é julgado, criticado e silenciado. A sociedade não sabe lidar com a depressão que não se manifesta em tristeza. Não sabe escutar o silêncio. Não sabe acolher a ausência.  Mas há momentos em que o vazio se revela. Não em lágrimas, mas em pequenos gestos como o olhar perdido, a resposta curta e o sorriso forçado. Quem sabe escutar, percebe. Quem sabe observar, reconhece. Mas poucos sabem. Poucos querem saber. Poucos têm paciência para escutar o silêncio.

A depressão é também uma forma de resistência. Resistência contra o mundo que exige sempre mais, contra a sociedade que não aceita fragilidade e contra a vida que não permite pausa. Quem vive a depressão sem tristeza resiste em silêncio, continua a cumprir, a sorrir e a existir. Mas por dentro, há uma luta constante, uma batalha invisível e uma guerra sem nome. E no meio dessa guerra, há também esperança. Não esperança luminosa, não esperança evidente, mas uma esperança discreta, quase imperceptível. É a esperança de que alguém escute, de que alguém perceba, de que alguém acolha. É a esperança de que o silêncio seja finalmente ouvido, de que o vazio seja finalmente reconhecido, de que a ausência seja finalmente compreendida.

A depressão é também uma forma de espera. Espera por algo que não chega, por uma palavra que não se diz e por um gesto que não se cumpre. É como estar sentado numa estação onde os comboios não passam, mas continuar a olhar para os trilhos, como se em qualquer momento pudesse surgir uma locomotiva que nos devolvesse ao movimento da vida. Essa espera não é tristeza, é suspensão. É estar entre o que não é e o que ainda não chegou. E nessa suspensão, o tempo torna-se matéria estranha. Os minutos arrastam-se, as horas pesam e os dias repetem-se. Não há novidade, não há surpresa e não há entusiasmo. O tempo da depressão é um tempo sem cor, sem sabor e sem música. É um tempo que não se vive, apenas se suporta. Quem olha de fora vê rotina, vê normalidade e vê continuidade. Mas por dentro, há apenas sobrevivência.

A depressão é também uma forma de silêncio social. Quem sofre sem lágrimas não encontra espaço para falar. Não há linguagem que traduza o vazio e não há metáfora que explique a ausência. E quando tenta falar, encontra incompreensão, encontra julgamento e encontra silêncio. A sociedade não sabe escutar o que não se diz em lágrimas. Não sabe reconhecer a dor que não se mostra em tristeza. Não sabe acolher o sofrimento invisível.

Mas há quem perceba. Há quem saiba escutar o silêncio, quem saiba observar os gestos e quem saiba reconhecer os sinais. São poucos, mas existem. São aqueles que não perguntam “estás triste?”, mas perguntam “ainda sonhas?”. São aqueles que não exigem lágrimas, mas oferecem presença. São aqueles que não julgam, mas acolhem. E é nessa escuta que começa a cura.

A cura não é rápida, não é fácil e não é linear. É feita de pequenos gestos, de pequenas presenças e de pequenas palavras. É feita de silêncio partilhado, de companhia discreta e de amor sem exigência. A cura não é arrancar a dor, mas aprender a viver com ela. Não é apagar o vazio, mas dar-lhe sentido. Não é eliminar a ausência, mas transformá-la em espaço de criação. Porque a depressão, mesmo sem tristeza, pode ser também fonte de revelação. Revelação da fragilidade humana, revelação da necessidade de escuta e revelação da importância da presença. Quem vive a depressão sem lágrimas descobre que a vida não se mede apenas em alegria, mas também em silêncio. Descobre que o valor da existência não está apenas nos momentos de entusiasmo, mas também na capacidade de suportar o vazio. Descobre que a dor invisível pode ser também caminho para a profundidade.

E assim, a depressão deixa de ser apenas doença. Torna-se experiência, torna-se travessia e torna-se aprendizagem. Não é apenas tristeza, é também silêncio, é também vazio e é também espera. É uma forma de estar no mundo que exige escuta, exige presença e exige amor.

 

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