JORGE RODRIGUES SIMAO

ADVOCACI NASCUNT, UR JUDICES SIUNT

A China entre dois sistemas

Orville Schell - Wealth and Power: China's Long March to the Twenty-First Century

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“The emergence of China as a leading exporter and ‘‘factory to the world’’ was arguably the most significant development of the late 20th and early 21st century. By opening the country to outside investment, and unleashing the potential of China’s own entrepreneurs and state-owned enterprises, China’s government has been able to achieve in thirty years what many developed countries have achieved over centuries.”

 

The Chinese Yuan: Internationalization and Financial Products in China

Peter G. Zhang

 As diferentes formas de capitalismo, ainda ontem, coexistiam com diferentes formas de socialismo. Estas últimas, quanto ao essencial desapareceram. É o sinal anunciador, para muitos, de que todas as formas de capitalismo diferentes da sua forma mais pura devem também desaparecer, para que a realidade fique finalmente conforme ao seu modelo de referência.

Era impossível ou duradoura uma “terza via”, entre capitalismo e socialismo, pelo que cada um tem, respostas diferentes para as seguintes questões: O que é o capitalismo? O que é o socialismo? Fazemos referência aos sistemas conceptuais ou aos sistemas concretos? Muitas vezes, certos pressupostos ideológicos levam-nos a comparar instintivamente o funcionamento concreto de um sistema com a teoria pura do outro.

A conclusão só pode então ser favorável à segunda. As implicações em termos de bem-estar, da teoria do equilíbrio geral concorrencial que é o modelo de referência do capitalismo são obviamente superiores ao resultado do funcionamento concreto de uma economia socialista.

É passível de se pensar que capitalismo e socialismo no sentido conceptual delimitam um espectro que contém todos os sistemas possíveis, do qual constituem as formas extremas. Nesse sentido, todos os sistemas existentes seriam “terzas vias”, isto é, vias intermediárias que combinariam, segundo diferentes ponderações, os princípios de organização que definem cada um dos sistemas. Algumas dessas soluções estão mais próximas do capitalismo, outras mais próximas do socialismo.

O que desapareceu na Europa de Leste foi um subconjunto específico dessas vias intermédias, próximo da extremidade socialista do espectro. É muito cedo, mesmo decorridos vinte e dois anos, para se saber categoricamente se a falência desses sistemas é imputável à sua natureza socialista ou às características institucionais específicas, incorporadas na solução intermédia que aí predominava.

O que desapareceu na Europa de Leste foi uma forma particular do comunismo, mais um regime totalitário do que uma ideologia. A confusão entre ambos era cuidadosamente alimentada, pois fornecia às ditaduras o álibi de uma ideologia generosa. Seria ilusório acreditar que o comunismo desapareceu por completo enquanto ideologia. Aliás, se fosse esse o caso, seria necessário inventar outras utopias. Seria perigoso, de facto, se o capitalismo enquanto sistema teórico só fosse confrontado consigo mesmo.

É verdade que o desaparecimento desta forma particular de comunismo não era previsto por ninguém. O seu carácter súbito apanhou o mundo de surpresa, deixando-nos sem distância em relação ao acontecimento, tanto na ordem do político como do económico. Era impossível pensar a existência de outra alternativa ao sistema em que vivíamos senão a que se identificava com o modelo soviético.

Ficámos subitamente órfãos do outro, que tinha por função estruturante desenvolver-nos uma imagem gratificante de que no Ocidente vivíamos no menos mau dos sistemas. Qual a nossa referência? É aí que está o perigo. Acabamos por dizer, e até por pensar, que não existe alternativa possível. A derrocada de um mau sistema não é, em si mesma, a prova que aquele que subsiste é o melhor que se possa conceber.

Essa diferença de concepção sobre a natureza do sistema económico, via intermédia que conjuga princípios contraditórios de organização, ou via extrema inteiramente coerente sempre caracterizou o pensamento económico. Existem dois textos, pouco referidos, datados de 1931, que permitem avaliar as divergências de interpretação da época. Um dos textos, escrito por John Maynard Keynes durante as suas Conferências na Universidade de Chicago diz: “Vivemos hoje a maior catástrofe económica do mundo moderno, a maior catástrofe provocada quase inteiramente por causas económicas. Dizem-me que em Moscovo que isto é a última e suprema crise do capitalismo, e que a ordem social existente não sobreviverá.

É fácil confundir os desejos com a realidade. Mas se esta crise for mais tarde analisada pelo historiador económico, é verdade que há uma possibilidade, não vou mais longe, de ela ser interpretada como uma grande viragem. Não mais do que uma possibilidade, porém. Pois eu creio verdadeiramente que o nosso destino está nas nossas mãos, e que podemos sair desta crise se fizermos as opções adequadas, ou antes, se aqueles que detêm a autoridade em nome do mundo as fizerem”.

O segundo texto da autoria de Jacques Rueff, publicado na “Revue d'économie politique”, com o título “L'assurance chômage, cause du chômage permanent” diz: “O erro de raciocínio aqui é evidente, a crise não resulta do sistema capitalista, uma vez que só surgiu no momento e nos domínios em que se impediu que actuasse o mecanismo característico do sistema cuja eficácia se pretende demonstrar. O que o desemprego inglês prova não é a impossibilidade do mecanismo dos preços, mas sim, muito pelo contrário, o facto de que quando o seu mecanismo é paralisado, nenhum equilíbrio económico pode subsistir.”

Se passadas algumas dezenas de anos, estamos condenados a repetir o mesmo debate, provavelmente os conceitos que utilizamos para comparar os sistemas económicos estão desadaptados. Pensa-se geralmente em termos de diferença, ao passo que os sistemas económicos são vias intermédias, meios-termos. A diferença é um conceito estático, que fixa as categorias numa tipologia imutável; os jovens e os idosos, os ricos e os pobres, os imigrantes e os nacionalistas, os sistemas socialistas e capitalistas, etc.

O meio-termo, pelo contrário, é movimento, descrevendo um espaço dialéctico em que as diferenças surgem, formam-se, cruzam os seus contrários consoante as situações vivas e singulares (meia-idade, entre duas culturas, entre-dois-sistemas). É da natureza da economia política ser tomada entre duas línguas, nenhuma delas podendo ser condenada ao silêncio. A língua da necessidade apresenta-se como natural, originária, e conjuga os múltiplos condicionalismos da actividade económica.

As leis do mercado, por muito implacáveis que sejam para alguns, são incontornáveis, e é inútil tentar escapar-lhes. A outra língua, a da finalidade, a económica vale apenas pelo seu projecto e inclina-se perante a vontade política; projecto de elevação do bem-estar e espaço para todos, criação de um movimento suficiente para que cada um dele tire proveito, inclusivamente deslocando-se.

Essas duas línguas parecem clivadas. Na realidade manifestam um entre-dois, uma intenção muito intricada, em que a língua do projecto nunca está verdadeiramente afastada da necessidade, e a da necessidade de considerações éticas, encobrindo a realidade entre aquilo que é e aquilo que deveria ser. O conceito de economia socialista de mercado nasce da concepção de economia social de mercado de Ludwig Erhard, que foi chanceler da República Federal da Alemanha de 16 de Outubro 1963 a 1 de Dezembro de 1966, e que anteriormente tinha sido ministro da economia durante quinze anos.

A economia social de mercado pensada por Ludwig Erhard rejeitou desde a origem o colectivismo e o planeamento estatal que não fosse conforme com o mercado livre, ou seja, com as orientações da economia internacional de mercado, mas defendeu sempre a recusa do deixar fazer e deixar passar que caracteriza o liberalismo clássico. 

O pensamento de Ludwig Erhard rejeitava claramente os conceitos das teorias socialistas e capitalista que, caracterizando posições extremas ou excessivamente obstinadas, pudessem ser barreiras à livre concorrência nas trocas comerciais ou ajudar de forma desigual alguma das partes do processo. O pensamento da economia social de mercado tem como ideia base, uma economia de livre concorrência, pretendendo harmonizar a liberdade pessoal com um aumento de bem-estar e segurança social, conciliando os países por meio de uma política aberturista a nível mundial.

 Este pensamento aparece no auge da Guerra-fria e da hegemonia bipolar entre a União Soviética e os Estados Unidos e as desigualdades sociais não tinham atingido o pico da ruptura como acontece no tempo presente da globalização. A queda da União Soviética e o novo rumo dado aos modelos, instituições e mecânica de crescimento económico na China e outros sistemas comunistas que sobrevivem, demonstra como pretendem muitos teóricos de esquerda que existe uma economia capitalista mundial num sentido mais amplo.  

A desigualdade no meio das sociedades, quer as pertencentes aos países desenvolvidos, como as dos países em desenvolvimento aumentou, tendo por consequência crescido de forma inquietante o número de pobres e de pessoas que vivem no limiar da pobreza. A China teve que se ajustar à economia de mercado sem negligenciar as funções sociais básicas que são o suporte da sua política de Estado, evitando que o povo fosse arrebatado pela pobreza. 

Ao Partido Comunista da China apenas lhe restava criar um modelo que sem alterar o seu sistema político e o sua forma de governo, lhe permitisse agir no domínio internacional do livre mercado, por meio do Estado e sem a sua intervenção directa, possibilitando as trocas comerciais com os outros países, e estimulando o investimento estrangeiro e o consumo no mercado interno, cuidando ao mesmo tempo do bem-estar e segurança do povo.

A final, a derrocada dos sistemas socialistas abriu uma cratera gigantesca na língua finalista. Assim, perante tais condições, iremos regressar à língua originária da pura necessidade? O discurso do projecto na Europa de Leste fracassou porque se apresentava como final, como língua original e natural que não deixava entrever qualquer falha. Impedindo o meio-termo de funcionar, foram bloqueadas as possibilidades de deslocação, logo de adaptação.

 

Jorge Rodrigues Simão, in “HojeMacau”, 25.10.2013

 

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