JORGE RODRIGUES SIMAO

ADVOCACI NASCUNT, UR JUDICES SIUNT

Entre a Responsabilidade e a Fragilidade: A Imputabilidade Penal de Ricardo Salgado à Luz do Estado de Direito

Este texto analisa a questão da imputabilidade penal de Ricardo Salgado, antigo presidente do Banco Espírito Santo, à luz dos processos judiciais em que é réu. A partir da jurisprudência recente, dos relatórios periciais e da evolução da doutrina penal portuguesa, sustenta-se que, apesar da sua condição clínica, não se verifica o grau de incapacidade necessário para declarar a inimputabilidade penal. O texto defende que o princípio da dignidade humana deve ser compatibilizado com o dever de responsabilização, e que a justiça não pode ser suspensa pela doença, mas deve ser adaptada à sua realidade.

 

I. Introdução: A Justiça e os Limites da Responsabilidade

 

A imputabilidade penal é um dos pilares do direito criminal moderno. Representa a capacidade de um indivíduo compreender o carácter ilícito dos seus actos e de se auto determinar em conformidade com essa compreensão. Quando essa capacidade está ausente, por razões clínicas ou cognitivas, o ordenamento jurídico admite a inimputabilidade mas apenas em casos extremos, devidamente comprovados.

 

No caso de Ricardo Salgado, a questão da inimputabilidade tem sido invocada pela defesa como argumento para a suspensão ou arquivamento dos processos em que é réu. A alegação baseia-se na sua condição clínica, nomeadamente o diagnóstico de doença de Alzheimer. No entanto, os tribunais superiores têm reiterado que essa condição, embora grave, não atinge o grau de incapacidade exigido pela lei penal para afastar a responsabilidade criminal.

 

Este texto propõe uma análise crítica e jurídica dessa controvérsia, com base nos acórdãos recentes, nos pareceres médicos e na doutrina penal portuguesa.

 

II. O Conceito de Inimputabilidade Penal

 

A inimputabilidade penal está prevista no artigo 20.º do Código Penal português, que estabelece:

 

“É inimputável quem, por anomalia psíquica, não for capaz de avaliar o carácter ilícito do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação.”

 

Este conceito exige dois elementos cumulativos:

 

1.      A existência de uma anomalia psíquica relevante (ex. demência, psicose, Alzheimer em estado avançado).

 

2.      A incapacidade concreta de compreender e autodeterminar-se no momento da prática do facto.

 

A jurisprudência tem sido clara ao afirmar que o simples diagnóstico clínico não basta. É necessário demonstrar, com prova pericial robusta, que o réu estava incapaz de compreender ou controlar os seus actos à data dos factos.

 

III. O Caso Ricardo Salgado: Diagnóstico e Prova Pericial

 

Ricardo Salgado foi diagnosticado com doença de Alzheimer em fase inicial durante o julgamento de processos relacionados com corrupção, branqueamento de capitais e abuso de confiança. A defesa alegou que essa condição o tornava incapaz de compreender os processos e de se defender adequadamente.

 

Contudo, os tribunais incluindo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional rejeitaram essa tese. O acórdão da Relação de Lisboa no caso EDP afirma:

 

“O arguido não é agora inimputável, ainda que padeça de doença mental. A prova pericial demonstra que não está no patamar de incapacidade que alega.”

 

A decisão reconhece a gravidade da condição clínica, mas sublinha que ela não compromete, de forma decisiva, a capacidade de compreensão e defesa. O tribunal admite, no entanto, que o cumprimento da pena pode ser adaptado, em respeito à dignidade humana.

 

IV. O Estatuto de Maior Acompanhado e a Esfera Penal

 

Em Julho de 2025, o Tribunal Cível de Cascais atribuiu a Ricardo Salgado o estatuto de “maior acompanhado”, reconhecendo a sua incapacidade para praticar actos de direito privado. Este estatuto, previsto na Lei n.º 49/2018, substitui o regime de interdição e inabilitação, e aplica-se a pessoas que, por razões de saúde, não podem gerir os seus bens ou tomar decisões jurídicas.

 

No entanto, este estatuto não tem efeitos automáticos na esfera penal. Como explica a penalista Ana Rita Campos:

 

“O estatuto de maior acompanhado não implica inimputabilidade penal. A questão é saber se o réu está em condições de se defender, o que exige uma avaliação específica. A doutrina distingue entre incapacidade civil e incapacidade penal. A primeira diz respeito à gestão de bens e contratos; a segunda, à capacidade de compreender e participar num processo judicial.

 

V. A Jurisprudência Portuguesa e o Princípio da Responsabilidade

 

A jurisprudência portuguesa tem sido cautelosa na declaração de inimputabilidade, especialmente em casos de figuras públicas envolvidas em crimes económicos. O princípio da responsabilidade penal exige que todos os cidadãos respondam pelos seus actos, salvo prova inequívoca de incapacidade.

 

No caso de Ricardo Salgado, os tribunais têm reafirmado que:

 

·         A doença não comprometeu a compreensão dos factos à data da prática.

 

·         O réu tem condições mínimas para se defender, com apoio jurídico e médico.

 

·         A pena pode ser adaptada, mas não anulada.

 

O Tribunal Constitucional, ao rejeitar o último recurso de Salgado, afirmou: “A doença pode ser tratada em ambiente prisional, consoante o seu grau e estado de evolução.”

 

VI. A Dignidade Humana e a Execução da Pena

 

A execução da pena em casos de doença grave levanta questões éticas e jurídicas. O Código Penal prevê, no artigo 106.º, a possibilidade de suspensão da pena por razões humanitárias, quando o cumprimento em meio prisional se tornar incompatível com a dignidade da pessoa.

 

No caso de Salgado, os tribunais admitem que, se a doença evoluir para um estado de dependência extrema, a pena pode ser suspensa ou convertida em medida alternativa. Mas isso não implica inimputabilidade apenas adaptação da sanção.

 

VII. Conclusão: Justiça Adaptada, Não Suspensa

 

A justiça penal deve ser firme, mas também humana. No caso de Ricardo Salgado, a doença de Alzheimer exige cuidados e respeito, mas não justifica a suspensão da responsabilidade penal. A inimputabilidade é excepção, não regra. E a prova pericial demonstrou que o réu mantém capacidade suficiente para compreender os processos e exercer o direito de defesa.

 

A justiça não pode ser suspensa pela doença, mas deve ser adaptada à sua realidade. O Estado de Direito exige que todos respondam pelos seus actos, com garantias, dignidade e verdade.

 

 

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