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O Caso das Gémeas Luso-Brasileiras: Entre a Excepção e a Responsabilização
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O Caso das Gémeas Luso-Brasileiras: Entre a Excepção e a ResponsabilizaçãoHOJE MACAU - GEOTURISMO E PARQUES TEMÄTICOS - 2 PARTE - 18.09.2025
O tratamento das gémeas luso-brasileiras com o medicamento Zolgensma, considerado um dos mais caros do mundo, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, desencadeou uma tempestade política, ética e institucional. O episódio, inicialmente envolto em silêncio, tornou-se um dos casos mais mediáticos da década, expondo fragilidades do sistema de saúde, zonas cinzentas da administração pública e suspeitas de favorecimento político.
A questão central permanece de como poderá alguém ser condenado neste processo? A resposta exige mais do que uma análise jurídica e requer uma leitura crítica da cultura institucional, da arquitectura normativa e da ética pública que sustentam o Estado de Direito.
As gémeas, diagnosticadas com atrofia muscular espinal, chegaram a Portugal em Dezembro de 2019. O acesso ao tratamento foi célere, excepcional e, segundo auditorias internas, fora dos procedimentos habituais. A marcação da primeira consulta hospitalar pela Secretaria de Estado da Saúde foi considerada a única violação formal das regras
A Inspecção-geral das Actividades em Saúde concluiu que o acesso à neuropediatria foi ilegal
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para apurar responsabilidades reconheceu uma “intervenção especial” da Casa Civil da Presidência da República, mas não constatou ilegalidades formais. O filho do Presidente, Nuno Rebelo de Sousa, terá enviado um correio electrónico em 2019 alertando para a situação das crianças. A ligação institucional, embora informal, levanta questões sobre influência, excepção e responsabilidade.
Do ponto de vista penal, a possibilidade de condenação depende da existência de dolo, violação de deveres funcionais e prejuízo para o interesse público.
Os crimes eventualmente em causa incluem:
· Prevaricação de titular de cargo público
· Abuso de poder
· Violação de normas administrativas
· Favorecimento indevido
Contudo, até ao momento, não há arguidos formalmente constituídos. O Ministério Público continua a investigar, mas a ausência de imputações concretas revela a dificuldade de transformar suspeitas em acusações sustentadas.
Mesmo que não se prove crime, o caso levanta uma questão ética incontornável: pode o Estado tratar cidadãos de forma desigual, mesmo em nome da urgência clínica? A resposta exige uma reflexão sobre o princípio da igualdade, a transparência dos critérios e a legitimidade das decisões excepcionais.
A ética pública não se mede apenas pela legalidade mas pela coerência, justiça e confiança. Quando o Estado actua fora das regras, mesmo com boas intenções, compromete a integridade institucional.
A divulgação do caso pela TVI e pela CNN Portugal foi decisiva para o escrutínio público. As reportagens revelaram documentos, testemunhos e contradições que colocaram o poder político sob pressão. A mãe das gémeas, por sua vez, processou o médico denunciante e os jornalistas envolvidos, alegando difamação, violação de privacidade e maus-tratos psicológicos. O conflito entre liberdade de imprensa e protecção da intimidade é antigo, mas neste caso assume contornos delicados. A exposição mediática das crianças, embora involuntária, foi consequência directa da opacidade institucional. A imprensa cumpriu o seu papel mas o Estado, nem tanto.
Um dos elementos mais controversos do caso reside na distinção entre ilegalidade formal e irregularidade administrativa. A Inspecção-geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu que houve uma violação das regras de acesso à consulta hospitalar, mas não identificou crime. A Comissão Parlamentar de Inquérito reforçou essa leitura, apontando para uma “intervenção excepcional” sem consequências penais directas.
Esta fronteira é juridicamente delicada. A ausência de dolo, de prejuízo mensurável ou de benefício pessoal pode impedir a configuração de crime. No entanto, a existência de favorecimento institucional, mesmo que não tipificado penalmente, compromete a equidade do sistema. A justiça não se mede apenas pelo Código Penal mas também pela coerência das práticas públicas.
O caso das gémeas revela um padrão recorrente na administração pública portuguesa que é a dificuldade em responsabilizar decisores políticos por aptos que, embora irregulares, não configuram crime. A cultura institucional tende a proteger os seus próprios agentes, invocando tecnicidades, zonas cinzentas e interpretações benevolentes.
Esta arquitectura da impunidade não é explícita mas estrutural. Resulta da fragmentação normativa, da lentidão processual e da ausência de mecanismos eficazes de controlo. Quando o sistema não consegue punir, mesmo quando há evidência de favorecimento, a confiança pública é corroída.
A intervenção da Presidência da República, embora informal, foi decisiva para o acesso das gémeas ao tratamento. O correio electrónico enviado pelo filho do Presidente, a articulação com a Secretaria de Estado da Saúde e a celeridade do processo revelam uma capacidade de mobilização que não está ao alcance do cidadão comum.
Quando a excepção se torna prática recorrente, o princípio da igualdade é comprometido. O Estado deve tratar todos os cidadãos com imparcialidade, especialmente em contextos de saúde pública. A criação de atalhos institucionais, mesmo que bem-intencionados, fragiliza o sistema e legitima a desigualdade.
Durante meses, o caso foi mantido em silêncio. As autoridades não prestaram esclarecimentos, os documentos não foram divulgados, e as decisões foram tomadas sem transparência. Este silêncio não foi apenas omissão mas sim estratégia. A gestão da informação tornou-se instrumento de contenção política.
A opacidade institucional é incompatível com a democracia. O Estado deve explicar, justificar e assumir. Quando se esconde, mesmo que por prudência, alimenta a suspeita. A transparência não é risco mas condição de legitimidade.
A transformação de casos políticos em processos judiciais é fenómeno global. Em Portugal, o caso das gémeas é exemplo de como decisões administrativas podem gerar investigações criminais, com impacto directo na reputação de figuras públicas. A judicialização, embora necessária em certos contextos, pode também ser sintoma de falhas na responsabilização política.
O Parlamento, enquanto órgão de escrutínio, deve ser capaz de apurar responsabilidades sem depender exclusivamente da justiça penal. A CPI cumpriu parte dessa função, mas a ausência de consequências concretas revela os limites do modelo. A política deve ser capaz de se autorregular e de se responsabilizar.
A confiança dos cidadãos nas instituições públicas é um dos pilares invisíveis do Estado de Direito. Quando decisões excepcionais são tomadas sem transparência, mesmo que motivadas por razões clínicas ou humanitárias, esse capital simbólico é afectado. O caso das gémeas não compromete apenas regras administrativas mas também a percepção de justiça, equidade e imparcialidade.
A confiança pública é um bem jurídico difuso, difícil de quantificar, mas essencial para a legitimidade democrática. A sua erosão não se dá apenas por escândalos mas também por silêncios, omissões e incoerências. O Estado, ao agir, deve proteger esse bem com rigor e responsabilidade.
Até ao momento, ninguém foi formalmente acusado, julgado ou condenado no âmbito deste processo. A ausência de responsabilização, embora juridicamente defensável, é politicamente inquietante. Revela um sistema que, mesmo quando reconhece irregularidades, hesita em atribuir consequências.
Este padrão não é novo. Em múltiplos casos mediáticos, a justiça portuguesa tem demonstrado dificuldade em transformar suspeitas em condenações. A exigência probatória, a fragmentação institucional e a cultura de protecção mútua entre elites contribuem para esse bloqueio. O caso das gémeas é mais um sintoma não uma excepção.
A responsabilidade não se limita à esfera penal. Há responsabilidade política, institucional e simbólica. Quando um membro do governo intervém fora dos canais formais, quando a Presidência da República influencia decisões clínicas, quando o sistema permite excepções sem critérios claros há responsabilidade. Mesmo que não haja crime, há dever de explicação, de reparação e de reforma.
A ética da responsabilidade exige que os titulares de cargos públicos assumam as consequências dos seus actos, mesmo quando não são juridicamente puníveis. A democracia não se sustenta apenas na legalidade sustenta-se na integridade.
O caso das gémeas deve servir como ponto de partida para uma reforma profunda dos mecanismos de regulação clínica e institucional.
É necessário:
· Estabelecer critérios transparentes para decisões excepcionais em saúde pública
· Reforçar os mecanismos de controlo interno e externo nas unidades hospitalares
· Clarificar os limites da intervenção política em processos clínicos
· Criar canais formais para pedidos urgentes, com rastreabilidade e supervisão
A regulação não deve impedir a compaixão mas deve garantir que ela não se transforma em privilégio.
O caso das gémeas luso-brasileiras é complexo, sensível e paradigmático. Envolve crianças, saúde, política, justiça e comunicação social. A possibilidade de condenação formal é incerta mas a necessidade de responsabilização ética é evidente.
Portugal precisa de um Estado que saiba cuidar sem favorecer, que saiba decidir sem ocultar e que saiba proteger sem discriminar. A compaixão é virtude mas só se for acompanhada de equidade. A justiça, neste caso, não será medida apenas por sentenças mas sim pela capacidade de aprender, reformar e reconstruir.